O trabalho estabelece-se a partir do entendimento de que a cidade está conectada com a construção do campo social da memória, sendo este um palco de disputas constantes responsável por hierarquizar os discursos que são produzidos no corpo social. Vozes que atuam no campo são representadas por agentes sociais específicos, os quais possuem valores e interesses, e atuam de lugares sociais também determinados. Dessa forma, a perpetuação de discursos sobre lugares na história constroem na memória coletiva mais um instrumento de poder que enfatiza as crônicas e sistemáticas opressões de grupos.
Reconhecemos que a cidade se encontra como fator de espacialização desses embates, apresentando-se como suporte para a manifestação dos agentes sociais nos veículos da memória – ou seja, nos aportes materiais, ou não, que são capazes de uma transmissão de narrativas. Além disso, posto que as memórias são transcritas no espaço urbano, a construção deste também é realizada pelas condições hierárquicas entre certos valores e visões de cidade dos diferentes atores sociais. Assim, entende-se que os edifícios e intervenções urbanas são erguidos a partir de narrativas sobre a memória, mas uma vez que são dispostos na trama urbana, também passam a atuar como produtores de sentido sobre fatos e lugares.
As memórias podem se categorizar em centrais – e assim, hegemônicas – e locais – entendidas como subordinadas. Com isso, podemos considerar que o território da cidade se instrumentaliza a partir da asfixia das memórias subordinadas, as quais são historicamente soterradas por esforços de apagamento. E estes mecanismos de apagamentos são múltiplos, atuando na construção da cidade tanto no plano simbólico como na sua concretude. Ainda, as práticas de apagamento e resistência dessas memórias são sobretudo políticas e sociais.
Nesse sentido, a hierarquia imposta pelo modelo rodoviarista se tornou algo justificável para alcançar um determinado projeto de cidade, mesmo considerando os efeitos colaterais e o apagamento de certas partes não privilegiadas da cidade, produzindo apagamentos e esquecimentos acerca de grupos sociais e práticas coletivas. Esse modelo de urbanização compulsória promoveu um esvaziamento das ruas e dos espaços públicos, valorizando o ambiente privado doméstico, parte da associação família, moradia e trabalho, em detrimento de espaços públicos e coletivos. Reafirmando uma lógica de desenvolvimento pautada em diferentes formas de violência e no poder destruidor que certas decisões de Estado promovem sobre certas populações. A composição enfática dessa grande transformação urbana se coloca na paisagem dos bairros do Bixiga, Liberdade e Glicério e se apresenta não em tom de interlocução com a cidade, mas de um simbolismo monumentalista e de propaganda do governo vigente.

Fica evidente que perenidade da materialidade estabelecida extrapola-se não só com uma visão de cidade determinada, mas que no caráter monumental de suas estruturas consolida e exemplifica de alguma forma a supressão de vozes pela versão hegemônica.Acreditamos, assim, que a infraestrutura urbana constituída pela Ligação Leste-Oeste configura um território de memória dentro dos bairros do Bixiga, Liberdade e Glicério, ao entendê-los como um entrelaçado material e imaterial, físico e simbólico, onde se estabelecem relações que marcam, produzem e ressignificam práticas sociais, podendo estar imersas em uma lógica de referência ao passado, ou ao presente. Apresentando assim o desafio de apagar visões estabelecidas, e tornar visíveis aspectos outrora ocultados ou mesmo negados em relação ao território e o seu passado, configurando novas possibilidades e sentidos.
Assim, buscamos criar um percurso que interligue os três territórios específicos , que foram drasticamente alterados dentro do processo de expansão da malha viária na cidade de São Paulo. Os bairros do Bixiga, Liberdade e Glicério tiveram parte de seus espaços modificados por essa grande obra de infra-estrutura urbana que alterou drasticamente seu traçado e relevo topográfico original, sem se atentar às especificidades locais de cada um dos bairros, ocasionando em urbanismos difíceis e em processos de apagamento devido à aplicação de um projeto específico de cidade, e a inevitável destruição e transformação urbana que se desdobram desse. Pretendendo justamente encontrar pontos sensíveis - ou seja, lugares onde a supressão de memórias se pontua de forma mais tensionada - almejando, não somente a costura sobre esse território desmembrado através do caminhar, mas também como processo de entendimento da magnitude e imposição das obras. Reativar a noção do pedestre, além das perspectivas que a trilha informa ao permear as intervenções, a maneira como as perdas imprimidas pelo ‘complexo elevado Ligação Leste-Oeste’ se unem ao trazer à tona as memórias suprimidas. E assim, através desse percurso pedestre tensionar a ideia de sistema criado através desses apagamentos e das memórias presentes dentro desse processo de transformação urbana.

"Nada como São Paulo para provar que somos capazes"
Costa e Silva comenta sobre o Elevado Alcantara Machado para o Jornal da Tribuna no dia 21 e maio de 1967
sistematização do arco
Diagrama desenvolvido com o intuito de analisar as diferentes tipologias estruturais presentes ao longo do complexo viário, assim como os locais onde processos de demolição e remodelação marcaram a malha urbana, e os respectivos prefeitos responsáveis pelas realizações da diferentes etapas de implementação do complexo viário.

